sábado, 3 de janeiro de 2015

Ainda sobre Roberto Bolaños: há um detalhe que poucos perceberam...

            Acompanhei algumas polêmicas sobre a vida e obra de Roberto Bolaños durante os últimos dias na América Latina. Humoristas importantes confessando que nunca assistiram quaisquer episódios dos seriados do autor/ator; comparações entre Bolaños e Charlie Chaplin; contestações sobre estas comparações; menções de que o funeral do artista foi muito maior do que a sua obra.
           Eu, enquanto escritor, confesso que sou relativamente avesso às críticas e às abordagens de obras após a morte de seus autores. Concordo que bons autores devem ser estudados e celebrados, mas deploro os exageros. Isto porque atrás de cada autor consagrado vem não só uma avalanche de admiradores, mas também de críticos literários – muitos deles também escritores – e acadêmicos de toda ordem que, vestindo suas intelectualidades de vaidade, elaboram os mais impensáveis vieses de análises, as mais absurdas teorias, e acabam colocando palavras e metodologias psicocomportamentais e/ou psicossociais – sempre grandiosas – nas bocas e mentes de autores mortos que não estão mais aqui para contesta-las ou para apenas dizerem: “Agradeço o seu elogio, mas a coisa é bem mais simples do que você está pensando”.
            Por isso não vou me contaminar aqui neste texto com manias de grandeza comentando a obra de Bolaños, e não vou ousar dizer que Chapulin Colorado, por exemplo, derruba delimitadores sociais ao apresentar o herói desastrado, sem estilo padrão, sem o charme e sem a beleza hollywoodiana, promovendo uma espécie de inclusão, ao mostrar que qualquer um pode ser herói. Não, não vou dizer.
            O personagem El Chavo também não é um anarquista ou um antipolítico protestando contra o Estado, Estado este que não é representado pelo Senhor Barriga (Zenón Barriga), sempre contestado (atacado) por El Chavo quando aparece em cena para cobrar imposto, digo, aluguel. Ou será que haveria aí, entre estes dois personagens, uma mensagem oculta do tipo: “Famintos, protestem contra a injusta divisão de riquezas do mundo!”? Duvido!
           Tampouco Seu Madruga (Don Ramón) não representa as classes trabalhadoras oprimidas tentando fugir das rédeas patronais implacáveis e do curral alienador das linhas de montagem, ao se negar este personagem a trabalhar sim, mas se negar a trabalhar somente sob as ordens de um patrão, já que o personagem nunca demonstrou de fato não gostar de trabalho, pois sempre aparece em cena tentando empreender algo, seja como pintor, engraxate ou marceneiro.
       É claro que não podemos dizer que aBruxa do 71 (Doña Clotilde) representa pelo menos duas críticas:  uma à ditatura religiosa da América Católica e outra à censura à pouca liberdade de culto. Não, não podemos dizer isto, mesmo que ela tenha um cachorro chamado Satanás, e que o único episódio onde a casa de Doña Clotilde é mostrada por dentro se chame Espíritos Zombeteiros.
            Por fim, é um risco imenso dizer que para coroar toda esta improvável trama política, cultural, socioeconômica e filosófica, eis a figura do Professor Jirafales, levando-se em conta que professor é (ou deveria ser) de fato o único posto realmente poderoso (sem a volatilidade do poder) de uma sociedade.
           Ainda em um último fôlego de grandeza, poderíamos dizer que sim, que tudo isso é verdade, pois que El Chavo seria de fato uma versão moderna e infantil inspirada em Diógenes, O Cínico, filósofo grego que viveu em um barril, que era totalmente livre, dizia o que queria e era um grande contestador das instituições. El Chavo é tão livre e contestador o quanto Diógenes.
            Mas não, não é nada disso. São personagens criados apenas para fazer rir, e não para fazer pensar, no sentido filosófico e sociocultural. São personagens cuja a matéria prima são o cotidiano, as situações simples e o tornar ridícula a realidade. Mas esperem: é justamente aí que o gênio de Bolaños começa a surgir. Gênio? Alguém leu gênio? Sim, gênio!
            A ascensão artística de Bolaños acontece na Década de 1970, uma década importante em que – dando continuação à Contracultura dos hippies na Década de 1960 – esta década posterior consolidou o desejo de liberdade social, política, cultural e sexual de jovens de variadas idades, em um abrangente movimento que  procurava romper com o passado conservador, com o antiquado, com o cafona, com o antigo, com os preconceitos. É claro que o capital tratou de industrializar toda esta ideologia e as suas formas de manifestação. Todavia isso não tira a imensa importância das décadas de 1960/70 no cenário da cultura ocidental.              Durante esses anos, nos fenômenos de massa, a televisão superava definitivamente o rádio; pela tecnologia o ser humano já tinha chegado à lua; na música Woodstock sacudiu e provocou o mundo; a banda The Beatles já tinha causado uma revolução musical e seus componentes já haviam se separado; o Rock and Roll – sempre rebelde – estava no auge; na religião místicos de todo o mundo aguardavam e celebravam a aproximação da tão esperada Era de Aquários; na cultura e na antipolítica os hippies se multiplicavam pregando uma forma alternativa de vida e contestavam o Estado; o conceito Pop se universalizava e se consolidava; na chamada Sétima Arte clássicos revolucionários comoHair (final da Década de 1960) e Jesus Christ Superstar  (1973) promoviam definitivamente a cultura jovem e davam o tom da Pós-Modernidade; os futuristas 2001 - Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey) – ficção científica; Laranja Mecânica (A Clockwork Orange) – psicossocial e político; eBarbarella – erótico – já tinham apresentado ao mundo novos caminhos e novas dimensões de pensamento, tanto no conteúdo intelectual, quanto na profecia do que seria a ciência do futuro (nem sempre acertaram), e de como a mesma tecnologia poderia servir ao cinema e à TV; Giovanni Boccacio apresentava ao mundo suas sátiras polêmicas recheadas de sexo tido como desregrado, e com uma profunda crítica à sociedade; no cinema da Década de 1970 brilhavamhumoristas pós-Jerry Lewis como  Peter Sellers, e gênios do humor e da crítica sociocomportamental como Wood Allen; seriados como Jeannie é um Gênio (I Dream Of Jeannie) A Feiticeira (Bewitched) davam um show na TV mundial da Década de 1960/70com um humor requintado e banhado de beleza humana e cênica.




            Ao olharmos para a vila onde mora El Chavo e toda a turma, encontramos as mesmas situações. Lá os ridicularizados são os adultos, os mesmos adultos que na sociedade real são contestados pela juventude e pelas crianças. Neste caso El Chavo “vinga” a juventude e a criançada ao ridicularizar o professor que fica bobo e irracional rente à amada; a mulher que nunca reconhece os seus erros e os de seu filho, por isso caba tornando-o um idiota mimado; o senhorio que cobra alugueis impiedosamente, mas é sempre atingido ao entrar na vila; e o homem que não sai para trabalhar negando a sua posição milenar de respeitável mantenedor da casa e da família. Ao criticar os modelos tradicionais da sociedade ridicularizando-os, El Chavo, assim comoChapulin, também conquista a juventude e o público infantil. Como se não bastasse, não deixa escapar a figura da bruxa, que sempre assombrou as crianças, ridicularizando-a também através de zombarias e deboches.
            Esta evidência da fórmula do sucesso dos seriados de Bolaños ganha força quando ao notarmos que em muitos países os primeiros personagens do seriado El Chavo a ganharem o status de ícones da cultura pop, foram, inicialmente Seu Madruga (Don Ramon), e depois o Quico. Ora, estes dois são justamente os personagens com maiores doses de Nonsense, seja nas palavras, na pouca inteligência ou na inaptidão para o êxito, nas expressões faciais e nos movimentos físicos desengonçados e hilariantemente engraçados. Nestes mesmos países, posteriormente Chaves (El Chavo) e Chiquinha (la Chilindrina) subiram ao altar do pop também, e depois deles o próprio seriado que, por sua vez, consagrou toda a turma. 
            Neste viés de análise que acabamos de dimensionar, Bolaños é um gênio da criação de personagens cômicos infantis, das palavras e das situações aparentemente simples, mas com desfechos inusitados e muito divertidos. Tudo isto aliado a um estilo humorístico como o Nonsense, capaz de conquistar a juventude em variadas gerações, leva o autor e a sua criação o patamar de ícone da cultura pop.




           Ainda assim não podemos dizer que Bolaños pensou milimetricamente todo este processo de ridicularizar e desconstruir alguns dos modelos sociais sólidos, e assim agradar crianças (pela inocência do roteiro) e jovens (pelo quebrar das regras), se consagrando como um ídolo. O verdadeiro artista possui a criança em estado natural e praticamente inconsciente. Ora, quase nunca um processo bem sucedido na arte é pensado milimetricamente em todos os detalhes. Não me refiro à indústria da comunicação ou à mídia, mas à arte em si. E aí reside mais uma façanha do gênio, que é uma espécie de inteligência inconsciente, capaz de observar e entender profundamente uma sociedade, conseguindo recria-la de uma forma única e original. É como se na parte criadora de todo cérebro e coração artísticos houvesse um configurador automático que, movido pelo talento, produzisse toda esta magia da criação.
            Antes de terminarmos preciso lembrar que eu falei no início que há algo que poucos repararam (reparar é diferente de apenas ver) na criação de Bolaños. Pois bem: é o coração. Aquele coração que está no seu primeiro personagem de sucesso, o Chapulin Colorado. Qual herói, dentre todos os que já foram criados, tiverem o coração como um emblema? Os símbolos de cada herói representam o seu poder principal. Isto não nos deixa dúvidas de que o principal poder deChapulin/Bolaños é o amor. O mesmo amor que El Chavo requisita o tempo inteiro. Talvez seja apenas, e tudo isto, o que Bolaños quis nos dizer: “Amor!” “A importância que tem o amor!” “Amem!”.




             O amor, o verdadeiro amor, que está a par de tudo, que está conectado com a vida real e com a fantasia; amor que conhece as mazelas e as virtudes; amor que vislumbra inúmeras possibilidades. O amor, quando revertido em forma de verdadeira fraternidade, traz em si um conhecimento automático do que é o mundo, do que é a vida. Qualquer um que alcance o amor fraternal, penetra na ciência de entender o próximo e os próximos. 


            Nesse sentido o coração de Chapulin, nos convidando ao amor, é o símbolo máximo da herança de Roberto Gómez Bolaños para nós. 




Os ícones mais marcantes e que mais transformaram o mundo não foram apenas os que mais pensaram, foram também os que mais amaram.


            E afinal, foi sempre essa a bandeira maior da criança e da juventude transformadora e formadora de opinião: o amor! E Bolaños, de alguma forma, sabia disso.  Ele sabia que o amor é genial.


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